O flâneur de fones de ouvido

A música nos fones de ouvido é capaz de poupar as pessoas do esquematismo da contemplação – o qual é quase uma fatalidade para quem cotidianamente faz o mesmo caminho. Fazer o mesmo caminho, aliás, não poderia ser, a princípio, mais avesso à flânerie. Perder-se é impossível quando todos os caminhos são conhecidos. No fundo, todos prestamos tributos e temos saudades daqueles atalhos, daqueles caminhozinhos curvos, mais orgânicos e mais irracionais do que de qualquer cidade planejada, pois nesses ainda poderíamos nos perder e nos outros ainda é tão imperativo nos achar. Nas cidades planejadas só nos perdemos porque as coisas são tão iguais que seus traços característicos – de toda organização humana que se faz caótica – não se encontram presentes. Não podemos conhecê-los de cor porque não somos capazes de nos relacionar afetivamente com eles ( de modo que nas cidades planejadas nos perdemos sem garantia alguma de que tenhamos efetivamente nos perdido e começado a devanear).

Imagine que, perto de uma avenida agitada, em um desses engarrafamentos de hora do rush, seria possível ao flâneur observar um garoto de dois anos brincando de subir em uma caixa de papelão. A caixa ficava em frente a um balcão. Atrás do balcão, adultos desatentos. Os telespectadores observavam a tudo de dentro do ônibus, apreensivos, sem que pudessem interferir na cena mostrada. As comentadoras do banco de trás viram nesta cena um filme do Hitchcock, e censuraram os adultos (ir)responsáveis. Eu, porque estava com meus ouvidos tapados ao dodecafonismo involuntário do tráfego agitado, pelo contrário, divertida, vi Charles Chaplin. As curtas pernas do pequeno comicamente se desequilibravam sobre a caixa, como se ele estivesse brincando com um bambolê. Foi a música, esse mero detalhe, que mudou a tonalidade da imagem, quiçá da vida.

É sabido que os fones de ouvido deram à vida a estética de videoclipe. Segundo essa perspectiva, até o ônibus é capaz de ter lugar dileto nos nossos corações. Os usuários chegam inclusive a exigir em seus pensamentos que todos sigam o exemplo e empunhem seus fones de ouvido a fim de que discordâncias em relação à seleção musical não causem maiores distúrbios no coletivo. E dessa forma a música passa a preencher um road movie jamais monótono. O filme muda conforme a música. A música torna a paisagem de familiaridade mais uma vez estranha: um mero detalhe modificado e muito já se transfigurou da realidade.

Woody Allen, no filme Melinda e Melinda, propôs-se o desafio: escrever a mesma história pelo viés cômico e pelo viés dramático. Seria possível? Naturalmente. A mudança começava pela maior luminosidade da fotografia da comédia. Os impressionistas se dedicavam a esse tipo de experimento. Observavam uma mesma paisagem sob diversas incidências solares, em diversos horários do dia, com o objetivo de identificar como a luz imperava sobre os objetos. Carregavam consigo a esperança de ver que algo mudou. E tudo, de fato, havia mudado. Feito gravurista experimental, que cola e descola os acessórios das paisagens, o flâneur reconhece que a contemplação é, em suma, uma arte de sutilezas.

chaplin vs. hitch

O flâneur de fones de ouvido