O delírio é a redenção dos aflitos: o desejo como força política

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“O delírio é a redenção dos aflitos”, curta de Fellipe Fernandes realizado em Pernambuco, conta a história de Raquel, moradora de um prédio condenado. Ela está sendo coagida pela empreiteira para se mudar para outro lugar. Dadas as enormes semelhanças desse argumento com o argumento de Aquarius, comparações são inevitáveis. Este filme acaba por se configurar como um negativo, uma sombra do que Aquarius poderia ter sido e não foi, em particular no que diz respeito à potência política do filme, muito prometida, mas pouco entrevista em uma interpretação cuidadosa do mesmo. O delírio provavelmente se aproveita do conteúdo de importantes processos que observamos no país desde pelo menos as manifestações de junho de 2013. E, assim como as ruas, possui uma personagem vulnerável, que não é nenhuma heroína, mas antes uma mulher comum, proveniente das classes pouco abastadas, e que, no entanto, todos os dias tira forças para labutar.

A decisão de mudar ou não é algo que ela não pode fazer livremente, tendo em vista que não ganha muito dinheiro trabalhando no supermercado e ainda possui uma filha para criar. O pai da menina não aparece em nenhum momento. O namorado é distante e indiferente, não sendo um consolo para a impotência de Raquel. Seu corpo sente o desconforto dessa situação de não ter uma casa própria, de estar prestes a ser expulsa do apartamento, mas sem ter ideia de quando isso ocorrerá. Ela se queixa às amigas das dores de cabeça e do sono difícil. Essas queixas são combinadas com uma fotografia bonita, com um ligeiro tom onírico que vai crescendo ao longo do filme, dado pela luz artificial do supermercado, dos enfeites de natal, e da vitrine das lojas e da cidade à noite, e que nos deixam em dúvida a respeito da realidade ou irrealidade dos acontecimentos, emprestando ao filme uma ambiguidade interessante e rica para quem o assiste e busca interpretá-lo. Raquel sofre e deseja uma situação melhor, e essa é a potência política que o filme projeta. O delírio e o sonho são parentes do desejo e este, por sua vez, é o maior combustível para uma transformação sociopolítica radical.

Em um plano memorável, Raquel caminha pelas fileiras do supermercado, com todas aquelas inúmeras mercadorias disponíveis e esperando para ser consumidas. A loja reaparece como símbolo de uma reserva enorme de mantimentos e de possibilidade de satisfação das necessidades básicas do ser humano e que, não obstante isso, está longe do acesso de pessoas, como Raquel, que precisam delas e passam por elas sem poder efetivamente dispor delas. Com o zelo de uma mãe responsável e amorosa e a fúria desejante de um black bloc, Raquel encaminha sua situação para um desfecho inusitado.

 

Assista ao trailer: https://www.youtube.com/watch?v=Az3SPMz6d1k

O delírio é a redenção dos aflitos: o desejo como força política

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